O veneno que escorre nas aldeias

Avanço da monocultura em aldeias do Mato Grosso do Sul expõe milhares de indígenas à contaminação por agrotóxicos

Dos dois lados da estrada de terra vermelha, plantações de milho se estendem a perder de vista. A cena poderia ser em uma fazenda qualquer do Mato Grosso do Sul, mas estamos na Terra Indígena (TI) Panambizinho, em Dourados (MS). Ali, ao menos 80% da área está tomada pela monocultura. Diferente de uma propriedade agropecuária, as aldeias indígenas abrigam muita gente, o que eleva o risco de contaminação humana por agrotóxicos.

Somente no Panambizinho são cerca de 400 pessoas expostas ao veneno nos quintais de suas casas. Na Reserva Indígena de Dourados (RID), uma das mais populosas do mundo, o risco afeta os mais de 16 mil moradores das etnias Guarani Kaiowá, Guarani Nhandeva e Terena. “É difícil controlar o agrotóxico. Tem uma lavoura aqui, outra ali… Em todo canto tem”, diz Ramon Fernandes, capitão da Jaguapiru, uma das aldeias da RID. Na estimativa da liderança indígena, cerca de 30% da reserva é ocupada por plantações de milho e soja.

Nestas e em outras Terras Indígenas do estado, povos originários “alugam” seus terrenos para o cultivo de commodities. Entre os motivos, estão a pressão ruralista do entorno, a ausência do poder público na garantia de direitos e a impossibilidade de manter um modo de vida tradicional nas reservas atuais. Conhecida como arrendamento, a prática de ceder terra para não-indígenas plantarem nas TIs é ilegal. Já quando um indígena empresta para outro indígena, ela ganha o nome de parceria e é liberada.

Nos dois casos, além de uma taxa paga pela produção, os fazendeiros disponibilizam maquinário, sementes e outros insumos para o cultivo da terra. O veneno também faz parte do pacote. As aplicações de agrotóxicos costumam beirar janelas e portas das casas, próximo de onde os grãos são plantados para aproveitar o máximo possível da área, explica Ramon. A orientação da liderança, porém, é guardar distância de 50 metros de residências. “Mesmo que dê perda, vai ser só naquele pedacinho, [a praga] não vai atacar toda a lavoura”, argumenta o capitão, título dado aos indígenas responsáveis pelo contato com os órgãos do Poder Público durante a ditadura militar que permanece no século XXI.

Irregularidades no uso de agrotóxicos

“Já atuamos sobre o uso de agrotóxicos dentro das terras indígenas, muito próximo a casas das pessoas, e já processamos indígenas e não indígenas por arrendamentos”, afirma o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida, sobre a atuação do Ministério Público Federal (MPF) em relação ao tema. Segundo ele, entre as irregularidades mais comuns nas aldeias estão a importação de defensivos agrícolas falsificados do Paraguai, na fronteira com o Mato Grosso do Sul, e usos de agrotóxicos durante o dia. “A aplicação realizada ao meio-dia é criminosa pois ocorre em uma temperatura superior à determinada na bula, de até 25°C.”

O agricultor terena Sidney Freitas, morador da Jaguapiru, defende não haver risco de contaminação por agrotóxicos nas aldeias do estado, onde sua família mantém parcerias com indígenas em mais de 500 hectares de monocultura. Segundo ele, as aplicações seguem receituário feito por engenheiros agronômicos e apenas substâncias liberadas no país são usadas nas plantações. Indígenas ouvidos pela reportagem relatam que um motorista teria sido preso transportando agroquímicos ilegais cujo destino seria as plantações da família de Ney, que nega. O agricultor afirma ainda que as aplicações perto de residências são feitas somente de madrugada. “Essa questão dos agrotóxicos é muito delicada. Todos os agricultores levam isso ao pé da letra para que não haja desacordo entre as partes envolvidas.”

Por Matina Medina

Foto: Olácio Komori

Fonte: Colabora

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