Viver no município do Careiro da Várzea, no Amazonas, é conviver com a cheia e com a seca dos rios todos os anos. Além disso, quase a totalidade dos domicílios de lá estão em zonas rurais, distantes uns dos outros, e parte das casas podem até mudar de lugar ao longo do ano, já que uma peculiaridade da região são as residências flutuantes, casas-barco, sustentadas por troncos e construídas com tábuas de madeira, sobre os rios. No Censo Demográfico, o desafio é percorrer muitos quilômetros rio adentro, e também a pé, lidando com a seca que se acentua cada vez mais neste período do ano, para contar cada morador e retratar sua realidade de vida por meio das estatísticas.
Para chegar ao Careiro da Várzea, partindo da capital, Manaus, é preciso uma viagem de cerca de 30 minutos, num pequeno barco a motor. No caminho, há o bonito cenário do Encontro das Águas dos rios Negro e Solimões (nome dado ao trecho superior do Rio Amazonas no Brasil), onde botos aparecem com frequência. Chegando ao porto do município, ainda são necessários mais 30 minutos de barco para chegar à Comunidade São Sebastião do Paraná-Mirim, percorrendo os Rios Solimões e Paraná do Curari Grande, um dos setores de trabalho do Censo no município.
“Conhecer a realidade é fundamental!”
A coordenadora do Censo no Careiro da Várzea, Édina Thomé, explica que o planejamento para o trabalho do IBGE na área foi pensado para iniciar primeiro pelos setores mais próximos ao centro da cidade e, também, começando pelos setores onde a seca dos rios chega mais rápido. “Conhecer a realidade do local é fundamental. Desde o início, já iniciamos com setores rurais, e isso gera uma demanda de trabalho muito maior porque a logística é mais complicada e os supervisores do município acompanharam todos os setores de início de coleta, então eles já tiveram essa logística mais difícil desde o início do Censo”, disse ela.
Auxiliando o trabalho de Édina no Careiro da Várzea, o agente censitário Nailson Fernandes é responsável por acompanhar o trabalho dos recenseadores no município. Ele contou que este é seu segundo Censo Demográfico, pois, em 2010, também foi agente censitário do município. Para ele, as inovações tecnológicas do Censo avançaram muito de lá para cá, e isso “dá garantia sobre a qualidade das informações; garantia da cobertura do território”. Mas algo muito importante não mudou: “a equipe quase toda é moradora do município; só por isso, já se entende que todos estão dando o seu melhor”.
Lidando com a cheia e com a seca
Ao chegar na comunidade, é possível perceber que, com a seca, as casas ficam distantes do rio e, também, com certa distância uma das outras, sendo necessário fazer longas caminhadas. Numa das primeiras casas visitadas pela recenseadora Maria da Glória, na comunidade São Sebastião, vive Denison da Silva, que mora junto com seus pais e irmão. A casa da família foi construída a mais de três metros do chão, para não ser atingida pela cheia, mas, mesmo assim, ele conta que quando o rio enche, a água invade o domicílio: “está aqui a marca da água, ó”, aponta o morador. “Para nós, fica ruim; uma dificuldade, estar dentro de uma casa alagada, né? Ainda mais porque temos criança pequena vivendo aqui”, relata.
Denison respondeu ao questionário da amostra do Censo, com 77 perguntas, e, apesar de ser mais longo do que o básico, ele disse que “foi tranquilo responder”. O rapaz acredita que as informações obtidas no Censo 2022 “vão ajudar os governantes a olharem mais de perto a realidade do povo”. Para ele, algo que precisa melhorar na sua comunidade é o acesso à água nas residências. “Para nós, é bom porque temos um lago aqui perto e puxamos água com uma bomba, mas para muita gente fica difícil quando é época de seca”, explica.
Dessa forma, a família, assim como muitas outras na comunidade, não possui água encanada. Contudo, possui bomba para puxar água diretamente do rio e, portanto, tem água em casa, ainda que não filtrada e tratada. Já para beber, a água mineral é comprada no mercadinho a alguns quilômetros de distância.
O agente censitário Nailson Fernandes explica que mesmo na época da cheia, o Careiro da Várzea sofre com o problema de água potável. “O ideal seria uma distribuição em rede de água porque a maioria das pessoas aqui trabalha com agricultura, então ficar sem água é algo bem complicado”, relata ele.
Em busca de mais saúde
A moradora Ângela Maria acompanhava da janela o seu esposo responder ao Censo, na varanda de casa. Eles vivem há mais de 20 anos no mesmo domicílio, na comunidade São Sebastião do Paraná-Mirim, e disse que o maior avanço que já aconteceu lá foi a chegada da energia elétrica, mas nem se lembra em que ano isso se deu. Para ela, o ideal seria “ter um posto de saúde melhor; melhoraria a situação, porque nosso posto é muito básico”, expõe.
Ângela acabou de passar por uma cirurgia de catarata, e precisa ir com frequência a Manaus para se consultar com o médico. Ela se emociona ao dizer que perdeu recentemente a visão do olho direito, e que está com baixa visão do lado esquerdo. “Não consigo fazer mais quase nada… Meu esposo também está com pedras nos rins, aguardando cirurgia também, então não conseguimos mais plantar nada e nem criar gado. Mas nós vivemos assim mesmo…”. Apesar das dificuldades, Ângela disse que prefere viver na comunidade a morar em Manaus: “aqui é mais fresquinho; lá é muito quente”.
Ela considera “que o Censo pode ajudar porque assim os governantes ficam sabendo de todas as informações, do que a gente precisa. Seria bom se tivéssemos água encanada, se tivéssemos estrada, posto de saúde melhor”.
Sem tempo ruim
A recenseadora Maria da Glória, responsável por realizar as entrevistas na comunidade São Sebastião, disse que tinha muita vontade de trabalhar no Careiro da Várzea, conhecendo novos locais. Ela vive em Manaus, mas conta que trabalha como professora, nas proximidades do Careiro, há cerca de 12 anos, e apesar de estar longe do esposo e da filha em Manaus neste período do Censo, “fica feliz de estar contribuindo para o recenseamento da população”. A recenseadora “faz de tudo para superar suas dificuldades com a tecnologia” do dispositivo móvel de coleta (DMC) do Censo, para realizar o seu trabalho “da melhor forma possível”, ressalta.
Maria está passando uma temporada na comunidade para realizar o Censo, vivendo numa casa a 20 minutos de barco do local. Todos os dias, ela chega às 8h e volta às 17h. Ela disse que não tem problema nenhum em enfrentar dificuldades de trabalhar na zona rural, mas que tinha receio de cometer algum erro na hora de entrevistar os moradores. “Não vou dizer que não temo ser picada por uma cobra, venho de botas, inclusive; tem o boi brabo, que às vezes a gente encontra, e eles podem vir pra cima mesmo, e a questão de atravessar lama, sol…, mas, para mim, não é problema não. A minha dificuldade é com a tecnologia porque eu não pratico mesmo, mas o sistema pede que a gente se enquadre. Então, o meu supervisor veio, me ensinou, e teve toda paciência”, conta ela, que também acrescenta: “quando eu tenho dúvida, ligo para o Nailson”.
No seu trabalho no Censo, Maria percebeu uma característica de parte da população ribeirinha do Careiro da Várzea: ela apresenta uma mobilidade espacial relacionada com o regime dos rios. “Na seca, eles fazem a casa, reúnem 15 pessoas, e em três, quatro dias, a casa é construída, mas quando vem cheia, eles vendem a casa.”, explica a recenseadora, que às vezes encontra domicílios ocasionais, vagos ou nem encontra a casa que esperava encontrar em determinado local. “Pode ser que na cheia, eles coloquem uma boia por baixo da casa e levem ela para outro lugar”.
Maria gosta do seu trabalho como recenseadora, e disse que quando acabar sua missão no Careiro da Várzea, vai voltar para Manaus: “a não ser que o Censo ainda precise de mim em outro canto! Aí eu tô dentro (risos)!”, disse.
Por Jéssica Santos (AM)
Foto: Jéssica Santos